História longa, mas de agradável leitura e recompensadora ideologicamente. Texto do dia 9 de dezembro, escrito por Cynara Menezes de Montevideo para o saite da revista Carta Capital.
Pepe tecnológico
Chovia e ventava tão forte na noite do domingo 29 em Montevidéu que mal o presidente eleito pela Frente Ampla José “Pepe” Mujica fez o discurso da vitória e a cobertura do palanque voou para longe. Se os novos ventos que sopram no Uruguai serão de fato alvissareiros, só se saberá a partir de março, mas é possível prever que anunciam tempos distintos. Comparado a Lula e a Hugo Chávez, na verdade nunca houve um presidente na América do Sul como Pepe Mujica.
Apenas dois dias depois da eleição, a primeira-dama, Lucía Topolansky, declarava que o casal presidencial não se mudará para a residência oficial de Suárez e que continuará a viver em uma chácara na periferia rural da capital uruguaia, ao lado de seus cães – entre eles, a cadelinha coxa Manuela, que se tornou celebridade durante a campanha por ter sido alcunhada pelo dono de “cachorra política”. Manuela, vira-lata de pelo negro e pata dianteira esquerda amputada, era levada até para comícios e carreatas. O casal não teve filhos.
Ninguém duvida que os Mujica são políticos únicos. Os uruguaios que arranham o português não se cansam de definir o novo presidente do país como “uma figura”. E chamar Lucía de primeira-dama chega a ser ofensivo. Senadora, Topolansky foi, como Mujica, guerrilheira tupamaro, e também como ele ficou encarcerada durante longos treze anos. Com a vitória do marido, declarou que seguirá no Parlamento e só se aproximará do Executivo para tomar chimarrão.
Aos 74 anos, Pepe Mujica é um sobrevivente da ditadura que a história tratou de recolocar em evidência. Podia estar morto se as ações espetaculares das quais participou tivessem ocorrido na Argentina. Estudante de Ciências Humanas e vendedor de flores na juventude, abandonou tudo para se unir aos guerrilheiros do MLN-T (Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros), organização que reunia militantes socialistas, maoístas e anarquistas e que se definiria ideologicamente como marxista. Participou de vários assaltos, sequestros e da célebre ocupação de Pando, em 1969, quando guerrilheiros tupamaros tomaram a cidade a 32 quilômetros de Montevidéu e levaram 400 mil dólares dos bancos locais.
Em março de 1970, estava no bar La Vía – o mesmo ao qual se dirigiu na noite da vitória para saudar seus velhos companheiros – quando chegou uma patrulha policial e começou o tiroteio. Mujica recebeu seis tiros, passou três meses no hospital e de lá foi levado à penitenciária de Punta Carretas, de onde fugiu algumas vezes, sempre recapturado. Passou dois anos em um poço subterrâneo, sem nenhum contato exterior, e nos primeiros meses com as mãos atadas por arames. Conta que chorou ao voltar a ver a luz do dia. Saiu da prisão definitivamente em 1985, “mais socialista do que antes”.
Com a restauração da democracia no Uruguai, tornou-se o primeiro tupamaro a se eleger deputado, em 1995. Em 2000, chegaria ao Senado. Com a eleição à Presidência de Tabaré Vázquez, em 2004, foi nomeado ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca. Lucía, que era sua suplente, assumiria a cadeira do marido no Parlamento. O casal, cuja convivência iniciou em 1972, só oficializou a relação recentemente, em 2005, na cozinha da chácara em Rincón del Cerro, diante de quatro testemunhas. Será preciso reforçar as cercas rústicas da chácara para torná-la residência oficial do presidente, mas não é costume no Uruguai tanta liturgia no cargo como se montou no Brasil em torno dos governantes.
A ideia de Lucía Topolansky é transformar a residência de Suárez, que Tabaré tampouco utilizou para viver, na sede da Agência de Ciência, Tecnologia e Inovação. O ex-guerrilheiro plantador de flores e acelgas, e que pessoalmente abomina os computadores, sonha transformar o pequeno país de 3,2 milhões de habitantes em uma potência biotecnológica que em vez de exportar carne, exporte o conhecimento que tornou possível aos uruguaios, por exemplo, terem aumento de produção sem ampliar o rebanho. Que em lugar de vender novilhos, venda sêmen. Em suma, fazer do Uruguai uma nação “agrointeligente”.
Mujica aposta não só na educação como numa nova orientação vocacional voltada à especialização em biologia, o que possibilitará o desenvolvimento de vacinas, defensivos orgânicos e insumos de maneira geral para exportação. Pretende atrair os grandes laboratórios a se instalar no Uruguai, “a maior reserva agrícola do mundo”, pela criação de uma zona franca tecnológica. Com a exigência de que 90% do pessoal seja contratado no país, para impedir o êxodo de pesquisadores que ocorre atualmente. A ideia, ao que tudo indica, ecoou entre os jovens. Mujica recebeu 64% dos votos dos uruguaios de 18 a 29 anos.
O primeiro passo para essa sonhada revolução tecnológica foi dada durante o governo de seu correligionário Tabaré Vázquez. Quase 400 mil laptops foram distribuídos nos últimos dois anos a professores e estudantes das escolas públicas. O Uruguai se tornou o primeiro país do mundo onde todas as crianças da rede oficial possuem laptops. Com a vitória de Mujica, o objetivo seria expandir a distribuição de computadores portáteis aos alunos do ensino médio. De acordo com os institutos de opinião, o chamado Plano Ceibal foi o maior feito do governo Tabaré, aprovado por 90% da população. Mesmo o rival de Mujica nas eleições, Luís Alberto Lacalle, definiu o projeto como “uma maravilha”.
O êxito da empreitada podia ser visto nas celebrações da vitória. Famílias inteiras compareceram à festa em frente ao comitê do candidato, às margens do Río de la Plata, e muitas das crianças levavam orgulhosas seu laptop a tiracolo. Vejo um avô e uma avó com a neta, todos levando à cabeça gorros de crochê nas cores vermelho, azul e branco da Frente Ampla, a coalizão que elegeu Mujica, e lhes pergunto a razão do apoio ao candidato da situação. Enquanto os avós ficam tímidos, a menina não hesita em responder: “Por causa do XO”.
XO é o modelo de computador portátil desenvolvido pelo laboratório multimídia do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e apresentado por seu fundador, Nicholas Negroponte, em 2005, entusiasmando governantes ao redor do globo (Lula inclusive) por custar apenas cem dólares, o que não se concretizou. No Uruguai, o custo do projeto por criança foi de 260 dólares.
“Agora será introduzido um programa de inglês, para que os guris aprendam a língua praticamente sozinhos. Em pouco anos vamos ter uma população bilíngue. Com isso se cria a base para a sociedade do conhecimento”, disse o presidente eleito ao jornalista Samuel Blixen, autor de O Sonho de Pepe (editora Trilce), um dos oito livros que se publicaram recentemente no país sobre o ex-guerrilheiro. Dois deles estão entre os dez mais vendidos. O Sonho... é o segundo da lista.
Em um café nas proximidades da sede do Mercosul em Montevidéu, Blixen, veterano jornalista de esquerda que continua atuante no jornal semanal Brecha, aposta que outra mudança a ser promovida por Mujica como presidente será nas relações com Lula. “Apesar de se definir como esquerda, Tabaré se relacionou melhor com Álvaro Uribe”, diz Blixen, relembrando a Cúpula das Américas em Mar del Plata em 2005, quando o Uruguai assinou um acordo bilateral com o governo George Bush ante a oposição expressa de Lula. “Aliás, Tabaré manipulou até o final para que o candidato não fosse Pepe.”
O presidente eleito se encontra com Lula na terça-feira 8 em Brasília com a intenção justamente de sinalizar para as boas relações com o colega brasileiro, sobre quem já anunciou desejar ser “um clone”. Em relação ao Brasil, apesar das desavenças pontuais em questões de exportação, costuma dizer que “se os uruguaios forem inteligentes” não podem ser contra o gigante sul-americano e sim aproveitar-se disso. Juntamente com Lacalle, foi derrotada a proposta de que o país saísse do Mercosul.
Ao se aproximar de Lula, o presidente eleito pretende afastar a sombra de Hugo Chávez que pairou sobre si durante a campanha. Chávez e Mujica são de fato bastante próximos, mas analistas independentes não acreditam que isto possa render algo ao país além de convites ao venezuelano para saborear assados. Em termos práticos, se prevê que não vai haver nada, embora o próprio Mujica aposte em vantagens econômicas, sobretudo petrolíferas. As ligações entre os dois assanharam a direita do continente diante da virtual eleição de outro “bolivariano”.
Ansiosos por convencer os uruguaios da possibilidade de radicalização, no início de novembro partidários de Lacalle tentaram vincular o candidato da Frente Ampla à descoberta de um arsenal na casa de um contador. Não funcionou: em uma pesquisa posterior, 93% dos eleitores declararam que não iriam mudar seu voto. A poucos dias da eleição, o jornalista peruano Jaime Bayly causou indignação ao opinar que a eleição no Uruguai seria uma corrida entre velhinhos bêbados. “Ganhe quem ganhar, ganha Johnny Walker”, ironizou Bayly no canal de tevê colombiano NTN24.
No dia seguinte ao pleito, seria a vez do ex-presidente Julio María Sanguinetti criar polêmica ao declarar ao jornal O Globo que Mujica “não é um homem claro no que diz respeito a suas convicções democráticas, fala com desprezo sobre Constituição, Justiça, enfim, por alguma razão foi guerrilheiro e esteve tantos anos preso”. A frase caiu mal na própria imprensa uruguaia. O diário La República chegou a publicar editorial definindo Sanguinetti como um político “cada vez menos democrático”. O ex-presidente acabou distribuindo nota dizendo que as declarações foram dadas antes dos resultados.
Ao contrário do que disse Sanguinetti, o ex-guerrilheiro tem demonstrado que caminha em direção à centro-esquerda sem abrir mão de suas convicções socialistas. Fala de “reinventar” o capitalismo, de buscar o socialismo por outro caminho que não o de Cuba, “que está caindo aos pedaços de velhice”, e nem mesmo o da Venezuela. Sobre a liberdade de imprensa, desmente os detratores ao declarar que não pode, “a esta altura da vida, dividir a ideia de socialismo com a ideia de liberdade”.
Outra vertente da crítica direitista a Pepe Mujica foi a de que faz o elogio do “pobrismo” ao vociferar contra a “ditadura do consumo” ou até mesmo por viver numa chácara onde não há luxo algum. Lacalle tentou atacá-lo por aí, chamando a casa simples de Mujica de “casebre” e “buraco”. O ex-guerrilheiro respondeu que podia viver melhor, sim, mas preferia dedicar seu tempo a fazer as coisas de que gosta do que se preocupar em acumular dinheiro para bancar um estilo de vida que não é o seu.
Autêntico, Mujica não tem papas na língua. Prefere se comunicar com os eleitores em “lunfardo”, termo que designa um modo de falar típico da malandragem, embora seja mais uma maneira de se acercar ao povo do que sua única forma de expressão. Ao mesmo tempo que utiliza “puédamos” em vez do correto “podamos” (em português, “póssamos” e não “possamos”), para irritação da elite que o chama pejorativamente de “cantinflesco”, é capaz de discorrer horas sobre biometria, biotecnologia, engenharia genética, matemática ou filosofia.
Se por aqui a pré-candidata de Lula e também ex-guerrilheira Dilma Rousseff foi obrigada nos últimos meses a desmentir que tivesse participado pessoalmente de ações armadas durante a ditadura, esta não parece ter sido uma preocupação para os uruguaios. Mujica nunca se disse sequer arrependido do passado tupamaro. “No Uruguai se impôs a crença de que os tupamaros fizeram a defesa cidadã contra a ditadura”, afirma o analista político Ignacio Zuáznabar, para quem a Frente Ampla teria eleito “qualquer um” nas eleições em virtude principalmente das políticas sociais de Tabaré Vázquez, com redução expressiva do desemprego e da pobreza e melhoras na saúde pública.
A teoria do “poste” uruguaio cai por terra, porém, diante dos resultados finais da eleição. Pepe Mujica recebeu a maior votação da história, com 54,83% dos votos válidos.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
Tupamaros
Postado por Leandroo às 14:46
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