sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Cinemente

A hipótese morfina

parte de um texto de Marcela Antelo - Membro da Escola Brasileira de Psicanálise
e da Associação Mundial de Psicanálise


Hugo Munsterberg, em 1911, viu um filme mudo e pensou que os meios de comunicação de massas poderiam saturar os sentidos: Num filme, o mundo exterior sólido perdeu seu peso, vê-se liberado do espaço do tempo e da causalidade. “É como se o mundo exterior fosse sendo urdido dentro da nossa mente e, em vez de leis próprias, obedecesse aos atos de nossa atenção” 1. -- temia por isso que os filmes pudessem provocar um completo distanciamento do mundo real. O poeta Antonin Artaud, seu contemporâneo, percebeu a ação sensual do cinema desde outro lugar: “O cinema --que é-- mais excitante que um fósforo, mais cativante que o amor, exige temas excessivos e psicologia minuciosa. Exige a rapidez, mas, sobretudo, a repetição, a insistência, a volta sobre o mesmo, a alma humana desde todos seus aspectos. No cinema todos somos cruéis2”. Para Artaud, o distanciamento da vida constituía a superioridade do cinema e não seu maior pecado. “O cinema tem sobretudo a virtude de um veneno inofensivo e direto, uma injeção subcutânea de morfina”. O cinema como excitante notável dos sentidos convoca estados de grande exaltação da alma, suas paixões. Hoje em dia, certa doxa recupera a hipótese morfina e aponta as armas contra uma CNN narcótica, uma MTV anestésica, um Tarantino entorpecente, um Hot Channel hipnótico. Sobretudo, fala-se de aumento do nível de tolerância das audiências, tolerância, necessidade de administração de doses maiores para a obtenção do efeito inicial. O efeito inicial da morfina : estado de satisfação de todos os impulsos e desejos, orgasmo tóxico.

A diabolização da imagem cinematográfica cresce enroscada no cinema e se inscreve na tradição iconoclasta. A mitologia grega foi também usina de imagens em tempos politeístas e pré-industriais e podem se recolher provas arcaicas da condenação do apetite do olho. Privilegiada na enciclopédia infinita das queixas da carne, a fome de ver apalpa as imagens. Olivier Mongin3, no único livro dedicado inteiramente ao nosso tema que consegui achar, propõe que o olhar devora a violência nas telas para melhor poder ignorá-la na vida, evidenciando um superconsumo. O olhar envolve com sua carne dizia Merleau-Ponty.

O conceito de carne aparece na última elaboração de Merleau Ponty, influenciado por Bataille. “A carne é em nós este excesso que se opõe à lei da decência”. O olhar se aloja na carne. Jacques Lacan pensa o olhar como um objeto, surgido de uma espécie de automutilação que o ser padece. Coincidindo com Merleau Ponty e contra Sartre, separam o olhar do espaço da intersubjetividade, da relação sujeito a sujeito. O olhar preexiste ao visível já que somos seres olhados no espetáculo do mundo diz Merleau-Ponty. Quando o umbral do visível se abre, o olhar se subtrai. O invisível não é o contrario do visível, é sua contrapartida secreta “. Dessa contrapartida secreta do visível se alimenta o olho cada vez mais voraz. Há algo mais que o visível em jogo no cinema. Nietzsche soube fazer a pergunta certa:...” Para tudo que o homem permite fazer-se visível, podemos nos perguntar: o que é que ele deseja esconder?”.
A psicanálise ensina que a vontade do olho se satisfaz sobre o próprio corpo em primeiro lugar, e só depois se dirige ao corpo do outro e retorna sobre si como desejo de ser olhado. O próprio corpo passa então a se sustentar no olhar do outro. A alternância do sujeito que olha e o objeto olhado criam o cenário da violência como função. O prazer e a dor escrevem o alfabeto dos lugares do corpo e sabemos, desde Foucault que o corpo não nos pertence. Ele é objeto da bio-política que traça suas cartografias e regimenta seus gozos. O corpo que somos e não o que possuímos. Não há Hábeas Corpus.

O sexo e a morte, a experiência da satisfação e a experiência da dor se tornam então signos capazes de capturar o desejo do outro, de saciar o apetite do olhar. Se o corpo como carne mortal evoca o horror, o corpo como belo o cobre. Contemplar pacifica, momentaneamente. Conhecíamos o ópio dos povos, agora, a morfina dos espectadores. A tela oferece sossego frente ao vazio que abisma o campo da representação.

No tratamento desse vazio reside a genialidade de um Kubrick, que soube remeter o espectador a experiência do olhar, transformando o cinema em arma contra uma violência que não se pode erradicar. Frente a imagem que olha ao sujeito objetivizando-o, apela no sujeito sua experiência de olhar.

A tela do cinema é a esfinge que espera os caminhantes frente à entrada da cidade lançando-lhes uma pergunta enigmática. Na antiguidade clássica se não se encontrava a resposta, a esfinge devorava o caminhante. Hoje já não se entra mais nas cidades caminhando. Hoje, não há nada definitivo para ver, nada que possa ser simbolizado, nenhuma palavra nem imagem que sirva para efetivamente matar a coisa, pra formular a verdade relativa a nossa ausência de liberdade. Hoje, melancolicamente livres, voltamos para a sala obscura apenas sobra um tempinho. O cinema não é veiculo de exposição, é um assunto de experiência. O cinema não é técnica do imaginário como afirmavam Metz e Baudry, nem o articulador da visibilidade com a construção de identidades, uma máquina de traduzir, como a critica feminista pensa4. Porque sendo o cinema é experiência a psicanálise não se aplicaria nele procurando decifrar um produto da cultura. Pode sim sentar timidamente na sala escura para aprender o que a experiência cinematográfica pode-lhe ensinar sobre a produção do inconsciente, sobre os pesadelos da consciência.

1 comentários:

Anônimo disse...

Dois excertos:
1º - "Quando o umbral do visível se abre, o olhar se subtrai.";
2º - "A tela oferece sossego frente ao vazio que abisma o campo da representação.".

Contemplo que um completa o outro.