terça-feira, 15 de agosto de 2006

Fidelidade

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OS 80 ANOS DE FIDEL: CONFIDÊNCIAS

Leonardo Boff *

O que vou publicar aqui vai irritar ou escandalizar os que não gostam de
Cuba ou de Fidel Castro. Não me importo com isso. Se não vês o brilho da
estrela na noite escura, a culpa não é da estrela mas de ti mesmo.

Em 1985 o então Card. Joseph Ratzinger me submeteu, por causa do livro
"Igreja: carisma e poder", a um "silêncio obsequioso". Acolhi a sentença,
deixando de dar aulas, de escrever e de falar publicamente. Meses após fui
surpreendido com um convite do Comandante Fidel Castro, pedindo-me passar 15
dias com ele na Ilha, durante o tempo de suas férias. Aceitei imediatamente
pois via a oportunidade de retomar diálogos críticos que junto com Frei
Betto havíamos entabulado anteriormente e por várias vezes.

Demandei a Cuba. Apresentei-me ao Comandante. Ele imediatamente, à minha
frente, telefonou para o Núncio Apostólico com o qual mantinha relações
cordiais e disse: "Eminência, aqui está o Fray Boff; ele será meu hóspede
por 15 dias; como sou disciplinado, não permitirei que fale com ninguém nem
dê entrevistas, pois assim observará o que o Vaticano quer dele: o silêncio
obsequioso. Ei vou zelar por essa observância". Pois assim aconteceu.

Durante 15 dias seja de carro, seja de avião. seja de barco me mostrou toda
a Ilha. Simultaneamente durante a viagem, corria a conversa, na maior
liberdade, sobre mil assuntos de política, de religião, de ciência, de
marxismo, de revolução e também críticas sobre o déficit de democracia.
As noites eram dedicadas a um longo jantar seguido de conversas sérias que
iam madrugada a dentro, às vezes até às 6.00 da manhã. Então se levantava,
se estirava um pouco e dizia: "agora vou nadar uns 40 minutos e depois vou
trabalhar". Eu ia anotar os conteúdos e depois, sonso, dormia.

Alguns pontos daquele convívio me parecem relevantes. Primeiro, a pessoa de
Fidel. Ela é maior que a Ilha. Seu marxismo é antes ético que político: como
fazer justiça aos pobres? Em seguida, seu bom conhecimento da teologia da
libertação. Lera uma montanha de livros, todos anotados, com listas de
termos e de dúvidas que tirava a limpo comigo. Cheguei a dizer: "se o Card.
Ratzinger entendesse metade do que o Sr. entende de teologia da libertação,
bem diferente seria meu destino pessoal e o futuro desta teologia". Foi
nesse contexto que confessou: "Mais e mais estou convencido de que nenhuma
revolução latino-americana será verdadeira, popular e triunfante se não
incorporar o elemento religioso". Talvez por causa desta convicção que
praticamente nos obrigou, a mim e ao Frei Betto, a darmos sucessivos cursos
de religião e de cristianismo a todo o segundo escalão do Governo e, em
alguns momentos, com todos os ministros presentes. Esses verdadeiros cursos
foram decisivos para o Governo chegar a um diálogo e a uma certa
"reconciliação" com a Igreja Católica e demais religiões em Cuba. Por fim
uma confissão sua: "Fui interno dos jesuítas por vários anos; eles me deram
disciplina mas não me ensinaram a pensar. Na prisão, lendo Marx, aprendi a
pensar. Por causa da pressão norte-americana tive que me aproximar da União
Soviética. Mas se tivesse na época uma teologia da libertação, eu
seguramente a teria abraçado e aplicado em Cuba." E arrematou: "Se um dia eu
voltar à fé da infância, será pelas mãos de Fray Betto e de Fray Boff que
retornarei". Chegamos a momentos de tanta sintonia que só faltava rezarmos
juntos o Pai-Nosso.

Eu havia escrito 4 grossos cadernos sobre nossos diálogos. Assaltaram meu
carro no Rio e levaram tudo. O livro imaginado jamais poderá ser escrito.
Mas guardo a memória de uma experiência inigualável de um chefe de Estado
preocupado com a dignidade e o futuro dos pobres.


* Teólogo, escritor, autor de “Virtudes para um outro mundo possível” (três
tomos) Ed. Vozes.

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